Pela primeira vez, uma equipa de jornalistas entrou neste mundo que inclui já cerca de oito milhões de mensagens. No Santuário de Fátima, é designado por “Correio de Nossa Senhora” e compõe-se por cartas, postais e outros documentos escritos das mais variadas formas e tamanhos, como folhas de hotéis, bilhetes de transportes, papel de carta, cartões de visita, pagelas ou desenhos coloridos por crianças nas escolas.
Numa das mensagens, a autora pede: “Senhora, livrai-nos da guerra”. A guerra está presente desde o primeiro momento dos acontecimentos de Fátima: em plena Grande Guerra 1914-18, logo no primeiro diálogo contado pelos videntes, uma das perguntas é “quando acaba a guerra?” Ao longo do século, o fenómeno ligado ao santuário mariano atravessa-se com a questão da guerra. E intensifica-se sobretudo durante o conflito no antigo ultramar.

A guerra interferiu com as vidas dos videntes e com os quotidianos de milhões de portugueses. E durante o conflito nas então colónias portuguesas, o aproveitamento político de Fátima contrastou com algumas vozes que, a partir do catolicismo, contestavam o regime e uma atitude predominante de silêncio cúmplice por parte dos responsáveis da Igreja Católica.
Numa investigação inédita SIC/Expresso, jornalistas consultaram 50 mil mensagens deste espólio do arquivo de Fátima. Nelas se revelam muitos anseios do quotidiano, alguns deles surpreendentes e de foro muito íntimo e dramático.
No meio dos pedidos, surge a devoção traduzida numa relação muito próxima com aquela que se invoca como “mãe”, “mãezinha” ou “querida mãe do céu”. Quando se fala da guerra, é para pedir que os soldados não sejam mobilizados para o teatro de operações, que não fiquem feridos, que regressem sãos e salvos.

Muitas vezes, a oração dos crentes assume o discurso comum na época: a luta contra os terroristas ou o comunismo, Portugal como lugar de salvaguarda da fé...Em alguns casos, ousa-se pedir apenas “livrai-nos da guerra” ou que “vença quem tem razão”. Encontra-se também correspondência de pessoas exiladas e famílias separadas pelo regime.
De tudo isso falam estas cartas, bem como alguns testemunhos recolhidos durante a investigação junto de ex-combatentes e outras pessoas que viveram os acontecimentos.
Nestes dois episódios (em maio haverá um terceiro), a Grande Reportagem “Livrai-nos da Guerra” procura mostrar essa documentação, colocando historiadores, psiquiatras, teólogos, arquivistas e outrosinvestigadoresa analisar as mensagens e reflectindo sobre os factores políticos, sociais, psíquicos e religiosos presentes neste acervo.
Como elo de ligação entre especialistas e cartas a N. Sra de Fátima, os referidos ex-combatentes contam histórias da guerra e da devoção em cenário de guerra, emocionantes e por vezes dolorosas, revelando o papel inquestionável do fenómeno de Fátima na história do Portugal contemporâneo.

José Fernandes
Ficha técnica
Jornalistas: António Marujo e Joaquim Franco
Repórteres de imagem: João Venda e Pedro Castanheira, com Carlos Catarino e Jorge Miguel Guerreiro
Edição de imagem: Andres Gutierrez
Grafismo: Renato Mendonça
Produção: Diana Matias
Coordenação: Amélia Moura Ramos
Esta reportagem teve o apoio de uma bolsa de investigação jornalística atribuída pela Fundação Calouste Gulbenkian em 2018-19.